
Lila Ripoll permanece viva, encantada pela qualidade lírica de sua obra, desde os poemas iniciais em De Mãos Postas, publicado em 1938 pela Editora Globo. Já em 1941, com Céu Vazio, também da Globo, recebe consagração nacional, premiado o livro em primeiro lugar pela Academia Brasileira de Letras. Segue o fluxo eminentemente lírico até Por Que?, de 1947 (José Olympio Editora) e, em 1951, lança Novos Poemas, com o qual é distinguida com o “Prêmio Pablo Neruda da Paz”, dando início ao novo ciclo de poesia social, que se complementa com 1º de Maio (estes editados para Cadernos da Horizonte, da Livraria Farroupilha). Em 57, retorna a um passado idealizado, através de Poemas e Canções, também da Horizonte e, quatro anos depois, é lançado festivamente na Associação Rio-Grandense de Imprensa. O Coração Descoberto, tido como sua obra magna (Editorial Vitória, Rio de Janeiro), na qual encontra por assim dizer as raízes de si mesma, que em última instância, procura demonstrar a universalização da consciência, a realização do entendimento do ser humano inserido no todo. Sua dialética está prestes a uma solução pelo predomínio da verdadeira relação eu-mundo, onde supera a existência para atingir a essência. Em 1967, poucos dias antes de seu desaparecimento, a Editora Leitura (em convênio com o Instituto Nacional do Livro - MEC) lança Lila Ripoll - Antologia Poética, seleção de obras anteriores e de alguns poemas do inédito Águas Móveis (1965), que Lila não chegou a ver publicado em vida. Walmir Ayala, porém, em janeiro de 1968, consegue a edição, num exemplar dos Cadernos do Extremo Sul, de 16 poemas dos quais destaco este belíssimo. Noite: “Difusa e lenta/ a noite chega em passo de fantasma./ Em suas mãos o silêncio é uma flor/ perturbadora./ Flor de impossível/ fragrância. Misteriosa e metafísica./ Tudo parece irreal na noite/ enferma e despojada./ Vago em silêncio e névoa/ dentro dela. Mas vai comigo/ um pensamento claro/ Um veio de vertente/ Sei que existo na noite metafísica/ Sou um poeta real. Um fruto estranho/ na corrente nebulosa. Fruto palpável./ Fruto humano. Com olhos/ de olhar estrelas./ Há um fluxo nervoso/ em meus sentidos,/ um vai e vem de onda./ um morrer e renascer/ de água na praia./ Divido-me entre o sonho/ e realidade./ Penso e sofro./ Caminho e amadureço”. Ouço a voz dos críticos e dos amigos sobre sua obra. O eminente escritor e médico Cyro Martins, quaraiense, como foi também a Autora, assim se expressa: “O grande motivo de Lila Ripoll, e isto basta para singularizar um poeta, é a solidão, uma solidão - a solidão ancestral - que não foi procurada, que não sofreu o cultivo de nenhuma morbidez, mas que se foi ampliando fatalmente em torno dela. Estamos em face de um dos pontos culminantes da poesia brasileira de todos os tempos.” Comentou certa vez Moysés Vellinho: “Se dar a uma mulher o nome de poetisa importa a mais leve restrição a esse título, então eu violarei todas as leis da concordância, para afirmar que Lila Ripoll não é uma poetisa, mas uma poeta no mais alto sentido do vocábulo”. E Manoelito de Ornellas: “Não tenho o menor receio de colocar, nesta hora, o nome de Lila Ripoll entre as mais puras vozes líricas do Brasil e da América”. De Portugal, manifestou-se o crítico Augusto dos Santos Abranches, na Notícia, de Lisboa: A profundidade de seu lirismo espanta, pela clareza e pelo equilíbrio de seu formalismo poético. De uma integridade pessoal, feminina na mais pequena variação e profundamente social em toda sua forma de interferência na vida, seu canto eleva-se num impulso de fraternidade.” Encontro no arquivo de Walter Spalding alguns dados biográficos que a colocam no tempo e no espaço terreno: Lila Ripoll nasceu em Quaraí, Rio Grande do Sul, a 12 de agosto de 1916, filha legítima de Florentino Ripoll e de D. Leonor Pinto. Aí estudou as primeiras letras, aí cresceu, naquela “Quaraí da praça da cadeia velha,/ da igreja das corujas,/ das longas avenidas de bambus/ ...Quaraí de minha casa,/ com papai e mamãe no avarandado/ sombreado de parreira...” Depois, Porto Alegre. Continuação dos estudos. Professora, enfim, cujas últimas aulas seriam do Grupo Escolar Venezuela. Um dia Lila casou. Casou com o engenheiro Alfredo Guedes. Mas pouco tempo depois o marido falecia, e Lila voltava à solidão. Pergunto-me que foi Lila Ripoll, para além dos dados oficiais, para além dos depoimentos de críticos e amigos e confesso encontrá-la, pouco a pouco, relendo devagar a sua poesia. Vejo-a criança, naquela Quaraí onde, filha única, passou os primeiros anos No Casarão. Escuto-lhe a voz macia: Nasci num casarão velho/ de esquina,/ escondido entre salsos pensativos,/ E foi lá que a minha alma, ainda menina,/ Olhando dia e noite os poentes vivos./ Aprendi a viajar no pensamento./ Eu fui uma criança sem infância./ Senti, desde pequena, esse tormento/ que o sonho traz depois de cada ânsia./ E que é o maior dos males que conheço./ Às vezes, noite alta, eu levantava,/ vestia minha roupa pelo avesso/ E saía sozinha (a lua espiava)/ para olhar as estrelas e os céus altos.../ O quintal era um mundo diferente”./ Sim, o quintal banhado de luar, onde sentia o frêmito de uma liberdade imaginária, jamais experimentada. No mesmo poema, adiante, fala “da casa fechada com mil trancas”. Seriam estas trancas os tabus, os preconceitos, as repressões e injustiças do mundo real em que vivia? E que intuía existirem milenarmente? Por certo, pois em outro poema admite que ainda permanece presa ao mundo das convenções, onde quer que esteja, que se perdeu “em dores e dissabores”: “Não encontro os caminhos desta vida e já desesperei de os procurar”. Quero saber daquela menina que se definia “sem infância” e que a encontrou junto ao primo-irmão, Waldemar, quando este foi adotado pelos seus pais, ao falecerem, ainda pequeno, seus verdadeiros progenitores. E após, a dupla perda, por ter ele sido jovem assassinado (em abril de 1934), devido a motivos políticos. “O menino da pandorga parou de brincar/ e ficou olhando admirado./ Os olhos eram dois espantos negros/ no seu rosto./ Deixei que me olhasse/ deixei que visse as lágrimas:/ A pandorga subia,/ enfeitada com laços de papel,/ verdes, brancos, amarelos/ Oh! aquela pandorga, Waldemar,/ Viajei com ela para a infância./ O meu quintal surgiu ensolarado./ E com ele o menino dos cavalinhos de pau/ dos laços de cipó,/ das pandorgas coloridas,/ dos barcos de papel/ que fugiam na água das sarjetas.../ - Não posso ver uma pandorga/ sem chorar”.
Há quem diga que data da morte de Waldemar a sua consciência social. Teria sido? Não sei. Releio poema por poema e sinto-lhe a criatura nascida artista, condensando em poemas os anseios e as aspirações, as trevas e a luz do ser de todos os tempos. Ouço-lhe o canto pelos que não puderam cantar, a palavra pelos que não souberam falar. A poeta confidencia em solidária solidariedade: “Suspiro, verso de saudade,/ tudo música afinal./Eu canto porque suspiro, suspiro para não chorar,/ Sei que é meu ofício,/ que é ofício de cantar,/ posso semear esperanças,/ posso o futuro plantar!”/ E após: “Poeta, irmão, sonhemos juntos/ um mundo sem amarguras./ Sonhemos juntos, plantemos/ A terra está como um fruto/ em pleno amadurecer”. Lila Ripoll poeta, irmã, dona de um cosmovisão que se revela nas múltiplas facetas de um rosto que deseja despir-se dos véus inautênticos. Saiu de Quaraí e, já em Porto Alegre, após concluir os estudos secundários, apaixonada pelo piano, freqüentou o Conservatório de Música (hoje Instituto de Artes da UFRGS), onde se diplomou, pensando tornar-se concertista. Os caminhos levaram-na à poesia: acabou tendo de sacrificar seu maravilhoso piano para poder financiar a edição de um livro. Ironia do destino ou vocação irreprimível? Quem entende a trajetória de um artista, daquele que deixa seu rastro luminoso de alguma forma sobre a face do tempo, tornando-o atemporal, testemunho do eterno na fugacidade da condição humana? Lila, miúda, frágil, um dínamo em constante ritmo de existir: sua coragem e seu desejo de difundir a arte por todos os meios fizeram com que diversificasse as atividades: poeta sempre, a qualquer hora do dia ou da noite, durante anos dedicou-se ao comando do orfeãozinho do Venezuela; organizou (e regeu) o Coral do Metalúrgico - Agremiação anexa ao Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos - fundou também o Grupo de Arte para promoções teatrais; escreveu a peça de teatro, Um Colar de Vidro (encenada no Theatro São Pedro e amplamente aplaudida). Aliás, sobre a peça, Rita Canter escreveu em Depoimentos Literários: “Um Colar de Vidro, em três atos curtos, sem pretensões maiores, é obra de crítica social. Advinda daquela mesma luta em que se empenha no inconformismo e mágoa às injustiças humanas, surge, num enfoque irônico e mordaz, como consciência crítica de uma sociedade burguesa moderna, no que ela tem de banal e efêmero. Mas a artista é antes de tudo poeta. Não há como fugir. Em meio ao movimento, inquietação e vida no desdobrar das cenas resulta a beleza de um teatro poético, ainda que não estruturalmente”. Escreveu uma peça: montou outra, de Vinícius de Moraes, Orfeu da Conceição, com Delmar Mancuso encabeçando um grupo de atores gaúchos. Foi Presidente da Associação Brasileira de Escritores do Rio Grande do Sul, promovendo encontros com intelectuais de todo o País, nesta cidade; dirigiu a revista de vanguarda cultural Cadernos da Horizonte, em que colaboravam os mais importantes nomes das letras nacionais e, no início dos anos 50, visitando a Europa e indo até Moscou, como integrante de uma Delegação Cultural Brasileira, realizava um antigo sonho. Mas quem foi Lila Ripoll? Já possuo o seu retrato real? É na obra, mais uma vez na obra, que lhe descubro, à medida que se despoja das máscaras, à medida que crescem e amadurecem seus poemas. Sobre sua fisionomia poética, diz Walmir Ayala: “Uma fisionomia (...) integral, baseada num certo desencanto (...), um coração participante e esperançoso, um pudor de sua solidão (...). Sua cisma se estende em verso livre, como gemido (...). Há qualquer coisa perdida entre ela e ela (...). Lila canta baixo como fala baixo (...).” Sim, canta e fala baixo, mas a voz se eleva através de um de seus poemas proféticos, pungentes: “Não. Não irei sem grito./ Minha voz nesse dia subirá./ E eu me erguerei também./ Solitária./ Definida./ As portas adormecidas abrirão/ passagem para o mundo./ Meus sonhos, meus fantasmas,/ meus exércitos derrotados,/ sacudirão o silêncio da convenção/ e as máscaras de piedade compungida./ Dispensarei as rosas, as violetas,/ os absurdos véus sobre o meu rosto./ Serei eu mesma,/ Estarei inteira sobre a mesa./ As mãos vazias e crispadas./ Os olhos acordados,/ a boca vincada/ de amargor./ Não, não irei sem grito./ Abram as portas adormecidas,/ levantem as cortinas,/ abaixem as vozes/ e as máscaras/ que eu vou sair inteira./ Eu mesma. Solitária,/ Definida.” Juntam-se os fragmentos, unem-se afinal em mosaico bizantino, pleno de cores e ritmos dramáticos na forma e no conteúdo humano. Lila, em seu leito de morte, luta para ver publicados seus versos inéditos, cujos originais ainda agora esperam uma edição condigna. E diz: “Enferma,/circunscrita aos limites do meu leito,/ faço um curso de silêncio e solidão./ Curso de olhar e ver./ De calar e compreender./ No meu quarto, é tempo de pensar,/ Tempo de alongar o olhar para além das paredes./ De entender as mensagens secretas. De ler/ nos muros apagados./ Nunca imaginei tão grande/ o peso das palavras. Dos pensamentos/ escondidos. Das confissões não anunciadas./ Agora é tempo de avaliar./ Torno-me lúcida. Domino a ciência/ de entender. Retornam as lições/ desaprendidas. As coisas olvidadas./ Sobem de todos os porões retalhos/ de conservas. Despojos de vida./ Amores de papel. Julgamentos injustos./ Muita poeira. Muita areia. Mas também/ canções perdidas e reservas de estrelas./ É tempo de pensamento e solidão./ Tempo de procurar em mim./ Tempo de me ver inteira num espelho.” Lila, enfim, inteira, autêntica, mergulhada na solidão ancestral. Mas apreendido o sentido da evolução, do cumprimento dos ciclos, onde, por certo, haverá reservas de estrelas. Mesmo porque elas também morrem e sua luz pode permanecer por milênios, eternizada pelo insondável mistério da criação. Patrícia Bins