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POEMAS E TEXTOS

poemas 

CENAS COTIDIANAS
Iveta Ribeiro


Fazem-se ao mar os veleiros...
Asas Brancas palpitando,
Bojos escuros singrando
As ondas mansas de então,
que, logo, se a tempestade
Surgir, cruel e maldosa,
Vagas tremendas serão!


Lá vai Tibúrcio, o moreno
Namorado da Luzia,
Filho do velho Lobão...
E, com ele, a alma dela,

Segue calma e confiante
Num futuro venturoso,
Bonito como um clarão!


Lá vai Mané Francisco
Pescador dos mais antigos
Pele curtida de sol,
Cabeça branca de neve,
Cantando para os amigos,
As cantigas que recordam
Muitos amores que teve
Dos quais não ficou nenhum
Por que amou depois o mar,
E quis mais bem ao seu barco,
Do que um rancho pequenino,
Erguido à beira da praia.


Onde nasceu para pescar!
Já vão longe os vultos finos
Dos barcos feitos ao mar...
Na praia brincam meninos,
Nas choupanas, as mulheres
Cosem redes, fazem lume,
Embalam berços cantando,
Com vontade de chorar...

Sonetos e glosas

A RUA DOS CATAVENTOS
MOTE
Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Mario Quintana – Alegrete/RS


GLOSA

Ilda Maria Costa Brasil

OH! Entre erros e acertos, deixo rastros
que tem servido a muitos de luz,
suavizando tempestades da vida,
que fatos inesperados provocam.
Faço desses, degraus para crescer,
uma vez que meus planos e propósitos
são instaurar paz de espírito e harmonia,
assim como o gosto pela leitura.
Escrevo diante da janela aberta,
ciente de que nem tudo é e será fácil.


Pegadas, para alguns, grandes legados;
para outros, sinais poucos expressivos.
Os caminhos poderão ser floridos,
com formosos e encantadores pássaros,
ou cobertos de pedras e folhas secas.
A escrita, em quaisquer circunstâncias,
mantém-me plácida, serena e forte.
Minha caneta é cor das venezianas,
seu tom azul-turquesa abranda a dor,
ao ouvir críticas sombrias e complexas.


Jamais, poderão dizer que me omiti
de exercer o papel de educadora,
vivendo de quimeras e fantasias,
pospondo o que acontece à minha volta.
Escrevo diante da janela aberta,
entre choro e riso, saúdo a poesia.
Ao abarcar aqueles com quem convivo,
procuro compreender suas atitudes.
Muitas são embasadas nos problemas
decorrentes das relações humanas.


Tais vivências deram-me aprendizado,
ainda que temerosa do amanhã.
Com palavras, também crio lindas prosas.
Minha caneta é cor das venezianas.
Ao deslizar numa folha é sutil,
envolvente, mágica e sedutora.
Estando o dia maravilhoso e o céu azul,
sensação do frescor da manhã
despertou-me belas inspirações
e fez-me pousar na literatura.


Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas,

e, assim como eu, bastante observadora.
Na Rua dos Cataventos há fascínio,
jacarandás e ipês esguios e antigos;
canteiros margeados por flores;

pássaros e ar agradável e lírico
que transpassam a grandeza e o saber
do cotidiano de Mario Quintana
e o seu profundo senso de humor.

poemas livres

EU NÃO ESQUECEREI

Ana Paula Dos Santos


Eu lembro do dia
em que ouvi falar,
ou melhor,
eu li num livro,
quer dizer,
eu vi num programa...
Enfim,
eu não esquecerei
o dia em que tive
o conhecimento
da “Árvore do Esquecimento”.
Que nome horrível
para uma árvore!
Mas
o que era mais horrível
era a função
que essa árvore tinha:
fazer esquecer quem você foi um dia.
Não era a árvore da vida,
era a árvore da morte!
O sujeito devia
caminhar em volta
da árvore
enquanto esquecia
que era um africano livre,
que tinha um nome e sobrenome,
que pertencia a uma família
e que teria que abandonar tudo
e começar uma nova vida.
Vida?
Ou morte?
Eu não esquecerei
que naquela noite eu tive um sonho,
ou um pesadelo?
Eu não esquecerei:
eu me vi atravessando
o Atlântico Negro.
O mar não era azul,
era vermelho,
de sangue!
Eu me batia em esqueletos,
crânios,
monstros marinhos
que comiam gente.
Eu consegui escapar
e alcancei a costa africana.
Eu não esquecerei
desse dia
que eu retornei
à minha terra natal,
à minha “Mãe África”.

Eu lembro
que estava
diante da “Porta do Não Retorno”.
Eu ria,
eu gargalhava
e eu dizia:
“Eu retornei!”
“Eu voltei!”
“Eu não esquecerei!”
Eu lembro
daquele dia,
daquele sonho:
eu estava
em frente
à árvore do esquecimento.
Eu circulei a árvore,
de costas,
e fui lembrando
que eu era feliz
e eu sabia!
Eu não queria
embarcar naquele navio.
Eu não esquecerei.
Eu lembro de África
antes da divisão,
antes da espoliação,
antes do assassinato do meu povo.
Eu lembro.
Eu não esquecerei
que eu nasci em Wakanda
e Wakanda é eterna
em meu coração.
Pisei firme naquele chão,
naquele terreiro
de consagração.
Eu renasci dentro de uma flor!
Eu não morri.
Eu lembro.
Eu não esquecerei.
E não vou deixar que esqueçam!

contos

ONDE AS BRISAS SOPRAM
Caren Borges


A tarde de sábado foi incomum para Nadezhda. O coração compassava sem suspiros. A mente e o corpo, sentia-os fatigados pelas ventanias e tempestades viscerais. O mundo não parecia amigável nem dentro dela mesma. Caminhava a esmo e sem brisas-esperanças desde a aldeia ucraniana às margens do Mar Negro, da qual evadiu apenas com uma mala de mão e seu querido maltês. Na estrada cinzenta da cidade portuária Mariupol, os carros passavam contendo olhares pouco amistosos. O cenário assemelhava-se a uma corrida pela vida, só que, ao invés de atletas, viam-se zumbis sem saber se na linha de chegada haveria vitórias.
Por meio de um comboio, Nadezhda finalmente alcançou a fronteira sendo acolhida na fila para a documentação. Deixaria para trás o país e todas suas origens. A vida caleidoscópica girava em efeito pesadelo. Vislumbrava como eldorado a América Latina. Amava música e natureza. Não sabia falar português nem espanhol fluentemente, porém 
aprenderia mais sobre o idioma ao assistir programas de televisão ou em audiobooks. O ar pueril era o que restava da identidade bombardeada. Os ataques das tropas russas no território ucraniano, após o início da ofensiva de Putin, marcariam para sempre suas memórias.
Na fila, conheceu Pavlo e Milla, ambos da Criméia. Foram bons amigos na horada escolha mais difícil que já fizera: deixar seu mascote e seguir apenas com a minúscula bagagem. O trio escolheu a Alemanha como primeiro refúgio. Devastados internamente pelas perdas adjacentes do conflito armado, adaptaram-se ao ACNUR, programa da ONU para refugiados e receberam a bolsa DAFI, administrada em conjunto pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha.
Os jovens conheceram uma moça germânica, filha de pais brasileiros, residentes em Hannover. A família de Martina foi prontamente acolhedora. Todos estavam sensibilizados com as histórias de resiliências dos sobreviventes ucranianos.
Mobilizados, refletiram sobre a missão de cidadania e organizaram um plano para concretizar o sonho dos apátridas pelo eldorado na América Latina. O clima na Europa era de incertezas. Hannover ficava há apenas 700 km do conflito armado. O medo pelo impacto de uma bomba atômica os assombrava. Uma guerra nuclear poderia eclodir.
Nadezhda sentiu uma onda de mal-estar no corpo, não compreendia os sintomas de náusea e sonolência. O atendimento pela assistência de saúde do ACNUR diagnosticou o período embrionário. A moça não acreditava no milagre da vida acontecendo no ventre. Lembrou-se da violência sexual sofrida durante a invasão russa.
Um choro inconsolável abateu-se sobre ela, assim como variadas indagações. O futuro, como seria? Os planos de estudos? O início de uma carreira? O sonho de morar na América? Não queria viver em campo para refugiadas ou filiar-se às cooperativas de mulheres vulneráveis. Nadezhda impulsivamente enterrava o passado, e uma ansiedade sobre o devir a contagiava. Milla e Martina a abraçaram fortemente como um círculo protetor.
A casa de Martina tornou-se o locus de longas conversas na sala. As orientações dos adultos sobre o futuro de uma jovem grávida sem parceria amorosa não parecia promissor, mesmo em um país em desenvolvimento. O direito ao trabalho ficaria restringido para uma refugiada grávida, imaginavam. Acreditavam que a capacitação fosse essencial para as refugiadas subsistirem e participarem da economia. Reconstruir a vida sem dominar outra língua também seria desafiador.
Nadezhda lembrou da mamushka e do gosto do prato preferido com aromas típicos que lhe proporcionavam alento. Foi desafiada pela família de Martina a cozinhar. Os ingredientes, encontrou-os no pomar coletivo do bairro, moda europeia de formação de clubes e condomínios com produtos orgânicos para residentes em apartamentos. Iniciou o preparo do Deruny com especial carinho. As panquecas de batata abrilhantaram os olhos de Pavlo. Emergiu nele um calor inexplicável sob a face. Ruborizado, elogiou a ucraniana que parecia roubar seu coração pelo estômago.
Milla lançou um olhar torto para a empolgação de Pavlo, sentira uma pontada de ciúmes pelo irmão. Porém admitiu que o Deruny realmente estava excelente e remetia às memórias do lar. Testemunharia o amor acontecer diante do inusitado paladar das vidas jovens? Ou seria apenas a fragilidade da autoestima dos sobreviventes reluzindo novos sopros?
Laços de amizade formavam uma atmosfera favorável para Nadezhda, apesar das lágrimas persistirem no cotidiano. Os quatro amigos arquitetaram ideias de futuro e puseram-se a sonhar. A onipotência juvenil tem esse ínterim de idealismos. Crer no futuro é a tarefa mais profícua do ciclo vital. Nadezhda tornar-se-ia uma refugiada ativista diante do desejo de participar das mudanças na sociedade. Queria participar da construção de cidades inclusivas e sustentáveis.
As tardes de sábado ganhavam novos contornos com a solidariedade dos pais de Martina. E os ventos mudaram totalmente após o primeiro mês de gestação de Amelie: Pavlo rumou à Austrália, Milla seguiu com Martina para a Argentina e Nadezhda tocou o céu quando atravessou o Atlântico.
Com a filha no ventre, dominou a língua portuguesa e matriculou-se no curso superior Online de Direito. Sonhava ser uma importante defensora das pessoas refugiadas, mesmo que a nova nacionalidade custasse a ser conquistada. O visto humanitário ou a naturalização são processos complexos para refugiados.
O Rio de Janeiro haveria de esperar. Nadezhda foi realojada em Prudentópolis, Paraná. Todas as noites lê para a filha histórias de amor-próprio para inspirar e introduzir a menina ao vocabulário e à cultura de igualdade de direitos entre os gêneros. 

A realidade de ser mulher (refugiada) na América Latina é árdua devido ao preconceito e à marginalização. A taxa de desemprego para as mulheres não tem diminuído. Recebem uma gama ampla de microagressões e precisam dedicar mais horas para provar o seu valor.
O rosto feminino da mãe apareceu na memória. Não esqueceu a cena da mama com uma arma nas mãos, pronta para defender a cidade diante da invasão russa. Nadezhda fugiu em busca de segurança, mas no caminho teve o corpo violado. A localização da mãe está em segredo, pois soube pela CIA que ela entrou para a “lista de assassinatos” do presidente russo Vladimir Putin. Sente a angústia de receber a notícia da morte da mãe e não poder recuperar seu corpo para uma despedida digna. Resgatar a mãe e o maltês vivos se tornaram sonhos improváveis. A vida na América Latina significava o renascimento. Amelie, a bebê, continha no sangue a Ucrânia e a Rússia, mas carregaria no coração a esperança ocidental da paz. Aprenderia que com solidariedade constrói-se um futuro melhor para todos. Nadezhda seguiria a caminhada segurando sua mão. Brisas-esperanças haveriam de lufar.
Nadezhda, finalmente experimentou uma tarde de sábado maravilhosa: recebeu a visita das amigas. Juntas foram em passeio à Curitiba. Lá, prestigiaram a mostra de cinema argentino “nuevos cines”. E, por puro acaso, assistiram ao filme “Paulina”, premiado em Cannes, em 2015. Perplexas, descobriram que a cultura da agressão ao sexo feminino na América Latina independe do contexto de guerras.
A mulher que tem no nome o significado de “esperança” deveria ser a porta-voz do otimismo da condição feminina. A mulher-esperança frisa que os ventos soprem sem as lentes do machismo. Intui que as brisas deveriam soprar onde as almas humanas se acalmam. Não se trata do mar, nem das montanhas, nem do oriente ou do ocidente, mas do mundo interior esperançado. Onde o amor à vida se faz nascente e os laços fraternos são continentes.

crônicas

A CRISTALEIRA
Liana Timm


A esperança é uma fonte de tensão absurda. É um jeito diurno de sonhar na constância da necessidade. Com ela o corpo se ativa e vai para onde a dificuldade quer barrar. Preocupado, aturdido, desanimado.
Há uma ausência de tudo. Nessa realidade há ausências irreparáveis, desafiantes. Fragilidades que se acomodam aos desafios. Sentindo certa asfixia, resta olhar o entorno com desalento e sofrer com essa probabilidade boba de uma gasta utopia.

Toda agitação perde o sentido. Perde. A realidade é esta pedra que não se move. Pega pela escassez ideal de lugar, um futuro potencializa a angústia no presente. Chego à cristaleira. Retiro o único copo de cristal restante da bateria de minha vó. Um paraíso ainda preservado entre tantas louças guardadas.
A tradição é um universo. Seus dogmas reduzem o alcance de qualquer invenção. Ao filtro vejo no copo a rachadura. A água escorre para fora. Tira proveito do rasgo, sábia e inventiva. Seu presente é passado a limpo. A herança desaparece no lixo.
Vejo-me distante na proximidade cósmica das gerações. Interligada sem o peso do translado, absorvo o que é comum e inadequado às carências. Nestas crises mais a incerteza do presente se agita.
A nostalgia desafia substituir o conteúdo guardado na cristaleira. Há pretensão em abrir espaço para resgates esgotados durante a insônia. Além do que, o móvel está longe de onde fico a tricotar, a ler, a escrever. E o quero bem perto. Há nele a liberdade de sair deste lugar. Os suvenirs, trazidos das viagens são reminiscências... Meus mitos de criança adulta. Museografia escondida de estranhos.
Perto da janela a luz revisa sozinha, restaura certos lutos e transfigura. Estilhaça com a incidência dos raios de sol, aquele velho pote de estanho trazido de São João Del Rei.
As canetas nele depositadas, foram escolhidas como veículos a transportar as tatuagens do tempo. Como cartas não enviadas. Descobertas décadas depois, motivam exclamações pelas interrogações nunca respondidas.
Nas gavetas há muito silenciadas, agora motivam curiosa disforia. Nada original encontrar cartões postais seculares misturados com anotações na agendada.
Descubro estar em revolucionária vasculha de impermanências e heresias.
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Tenho vários cacoetes. Repetidas vezes arrumo livros em dégradrée, meus olhos se inebriam com banalidades. Falo muito baixo. Meus ouvidos sofrem com barulhos inexplicáveis.
Vivo na tangente do real, mais certo, neste imaginário rebelde; difícil de colonizar. Meu corpo agora pede menos o mar que antes para molhar os desejos não saciados, esgotando alguns sintomas na evaporação oceânica. Os olhos se exercitam no esquecimento dessa paisagem que, mesma, se oferece sem ser.
Quisera ficar aqui para sempre, mas a vertigem pede socorro e volto.
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Pego o tricô. Estou a tricotar a mesma manta faz anos. São metros e metros de pontos e indagações. Onde encontrar uma forma de apaziguar as catástrofes do dia a dia? Para essa coisa simples de abatumar um bolo no fim da tarde, lembrando a receita tirada do caderno achado depois da morte da mãe!
No limiar das escolhas fico aqui, deslizando em meu reino de mobilidades. Cada ação é uma viagem entre as paredes desse lugar berço em que me embalo. Ouço ruídos e prantos vindo das florestas dos meus acabrunhamentos. E me escolho nessa aventura de inominados destinos.
Descubro as minhas crenças. Crente de que a acidez se interrompa no fluxo da vida sem chegar à boca. Que os ardis virem fábulas infantis ou orações inocentes. Crente nos labirintos das saídas.
Tomo água de novo. Agora numa taça comprada em Paris. Das viagens as taças são os meus souvenirs. Talvez porque taça seja o meu abre-te sésamo, meu gilgilan, meu gersal, meu azeite pra todas as dobradiças e articulações.
Abro um vinho. E nessa taça de vidro, com relevos de borboleta, pinto com os impressionistas, às margens do Sena.

artigos & COMENTÁRIOS

IMPLICAÇÕES DO OBJETO EXTERNO: CULTURA E EDUCAÇÃO
Eloá Muniz


Reconhece-se, portanto, que as primeiras experiências de prazer que a criança teve ao sugar o seio da mãe ou substitutos dele, ela quer reproduzi-las. O bebê, além de buscar o alimento para aplacar a fome, busca, por meio do seu grito e choro, o prazer possibilitado pela primeira experiência de satisfação. Nesse sentido, a procura é pela repetição da satisfação, que fez surgir à experiência tão prazerosa e a que é tão difícil renunciar. Zygouris (1999, p. 9) sugere que o bebê, tributário de uma avidez de amor, de seio e de leite, “mama o amor e aspira para um além leite, objeto de sua necessidade, assim como aspira incorporar um seio invisível, uma inútil teta de amor. O amor é o suplemento de alma cuja carência mata seguramente tanto quanto a carência de alimento”. Interessa registrar que a autora aponta para o amor (ou sexualidade) parcial – teta de amor – e não para o outro, objeto reconhecido na cultura. Parece que o amor a que Zygouris se refere não é propriamente ainda o amor de Eros, ainda que caminhe para isso. É como se fosse preciso um percurso da pulsão sexual até o objeto para que a função e o papel da cultura, da educação e do outro no aculturamento da sexualidade se tornem efetivos, como se nota nos complexos de Édipo e de castração. De qualquer forma, alerta-se para a implicabilidade do agente externo no funcionamento e sobrevivência psíquicos, num momento em que os movimentos de supressão das necessidades vitais já estão definitivamente emaranhados às experiências de satisfação, de prazer e desprazer, e escapam, portanto, de uma mera realização no plano da necessidade. O ato da criança que se dedica a chuchar o dedo é determinado pela busca de um prazer que já foi experimentado e é relembrado. E, como Freud (1908) acentua, de nada é mais difícil abdicar quanto de um prazer que já se experimentou. Essa experiência de satisfação fica retida nos traços mnêmicos e a essa satisfação nunca se renuncia, apenas se a substitui. Assim, é freudiano dizer que objeto a ser reencontrado não é o objeto perdido, mas o seu substituto por deslocamento. Como destaca Neri (1988, p. 26), “o objeto perdido é o objeto de auto conservação, da fome, e o objeto que se tenta encontrar, na sexualidade, é um objeto deslocado em relação a esse primeiro objeto”. Portanto, depois da primeira experiência de satisfação, retida nos traços mnemônicos, não se recupera mais o objeto, o que faz dele algo não idêntico ao objeto da função vital. E faz lembrar a conhecida frase dos Três ensaios, a saber, encontrar o objeto sexual é, na realidade, reencontrá-lo. Quer dizer, reencontrá-lo em outro lugar: na imagem, na memória ou na representação. Nesse sentido, o nascimento da sexualidade tem a ver com a dissociação do objeto sexual do objeto da função vital; separa o que é da ordem da necessidade do que é da ordem do desejo. O desejo refere-se a um movimento ou fluxo psíquico que procura reproduzir a recordação da experiência de satisfação. Recapitulando Freud (1900), a um impulso dessa natureza dá-se o nome de desejo. O quadro que se desenha se refere ao inescapável sentimento de perda que o sujeito está fadado a vivenciar: o sentimento de vazio ou a nostalgia do objeto perdido. O que o homem busca no objeto é o reencontro com o objeto perdido. Assim, o objeto investido libidinalmente é sempre referido a esse momento primeiro, lógico, que o sujeito imagina ter vivido, em que não havia estranheza, perda ou diferença, mas uma suposta completude. Entretanto, o desejo insatisfeito é o destino do homem na cultura, que visa o objeto perdido, mas encontra os objetos parciais da pulsão. O que se perde no circuito da pulsão é o que toda experiência de satisfação deixa como resto, o que não satisfaz, o irrecuperável. Dessa forma, qualquer satisfação é considerada parcial e só pode ser pensada pela via das pulsões parciais, limite imposto pela vida em sociedade. Compreende-se, portanto, que, embora a sexualidade tenha sua origem pulsional no campo somático, ela não consiste numa entidade biológica. Por outro lado, não é unicamente o outro que introduz a pulsão sexual na criança: há uma excitação (e intenção) originada no corpo que não pode ser esquecida. Freud (1940) aponta, no Esboço de psicanálise, que a mãe é a primeira sedutora da criança e exerce essa função por meio dos cuidados e atitudes que, em geral, tem em relação a ela. Esses conceitos freudianos sugerem que a experiência da sexualidade é uma experiência de satisfação experimentada por meio da excitação sensorial das zonas erógenas, que se amplia à medida que se estabelecem vivências e relações com o mundo externo, marcando propriamente a internalização do outro ou da cultura nos processos psíquicos. Não subordinada ao instinto, mas às vicissitudes do desejo, a sexualidade se revela no trânsito da pulsão pelas zonas erógenas do corpo da criança e apresenta seu ápice no Complexo de Édipo e seus destinos. Presume-se que essa leitura possa ser feita porque, nos momentos iniciais do pensamento freudiano, como no Projeto e nos Três ensaios, embora o objeto procurado seja o objeto representado na satisfação, ainda não há, por assim dizer, uma instituição do outro ou da cultura em si. A implicabilidade da presença da cultura na teoria da sexualidade e das pulsões, Freud a vai assumindo ao longo de sua obra, até a conceitualização de Eros. Assim, para que a vida psíquica se estabeleça, é imprescindível que o sujeito se lance aos objetos externos a ele próprio, fazendo com que o auxílio do mundo externo, mencionado por Freud desde A interpretação dos sonhos (FREUD, 1900), seja fundamental para se pensar os destinos das pulsões. Como diz Freud (1940, p. 227), “o único e exclusivo impulso destas pulsões são no sentido da satisfação, a qual se espera que surja de certas modificações nos órgãos, com o auxílio do mundo externo”. A presença do outro – o outro materno ou o empenhado nessa função – nas malhas da pulsionalidade do bebê é a única possibilidade de fazer emergir uma constituição psíquica, uma subjetividade. Aliás, é no movimento entre a pulsionalidade e a presença do outro que o fundamento da vida psíquica pode se dar, pelo menos no que concerne à visão freudiana. Dificilmente pode-se refletir acerca do estatuto da sexualidade nas formações psíquicas sem o objeto, ainda que se trate do objeto da fantasia, da representação. Originalmente, não se deve prescindir da relação de dependência do bebê em relação ao outro materno, o responsável por lidar com a pulsionalidade que ocupa o seu corpo. É o próprio corpo da mãe – que se situa enquanto presença (e ausência), que presta cuidados – que fornece meios para que no bebê se faça margem, e deem contornos às exigências pulsionais. É interessante pensar que essa condição biológica do bebê é ultrapassada pela marca fundamental da relação com o outro materno, mas, ao mesmo tempo, continua a funcionar como registro pulsional originário. A noção de objeto é relevante à medida que se inaugura a atividade relacional, que, no limite, corrompe a unilateralidade de um corpo meramente biológico, mesmo que, teoricamente, esse lugar possa existir no discurso freudiano. É notável que a pulsão em Freud tenha um [...] forte caráter biologizante, no sentido de sua presença orgânica antes da constituição psíquica, ainda que somente adquira significado como conceito metapsicológico. A compreensão metapsicológica em Freud oscila entre o psicológico e o biológico (CELES, 2004, p. 45). Considerações A psicanálise freudiana concebe o homem como um portador de estímulos a que, necessariamente, deve dar vazão. Desde o seu nascimento, ele é fadado a realizar o domínio das excitações ou estímulos como uma das principais tarefas impostas à psique e com essa tarefa ele terá de lidar ao longo da vida. O meio de lidar com esse acúmulo de estímulos encontra-se na regulação da descarga, de forma a regular o seu ritmo e, caso for, postergá-la conforme as possibilidades do momento. Sendo impossível a eliminação ou supressão da pulsão, resta a alternativa da sua domesticação, que supõe uma neutralização parcial do risco implicado pelo exercício cego da lógica que a governa. A domesticação pode ser tratada como uma energia deslocável ou libido dessexualizada (energia sublimada) já que ainda reteria a finalidade principal de Eros – a de unir e ligar – na medida em que auxilia no sentido de estabelecer a unidade, ou tendência à unidade, que é particularmente característica do eu. Se os processos de pensamento, no sentido mais amplo, devem ser incluídos entre esses deslocamentos, então a atividade de pensar é também suprida pela sublimação de forças motivadoras eróticas (FREUD, 1923). Assim, domesticar a pulsão consiste em adequá-la em intensidade, em potencialidade, o que também significa adequá-la quanto ao seu destino ao objeto, sujeitando-a a outro sistema de processamento, o processo secundário. Se não há possibilidade de eliminar por completo as exigências pulsionais, domesticá-las é uma das saídas para a vida em sociedade, o que seria tornar a pulsão razoavelmente compatível com as aspirações do eu de modo a não perseguir sua satisfação auto erótica, tornando-se acessível às influências que dele surgem. Como lembra Freud, o estágio do autoerotismo não deve permanecer: [...] a educação da criança tem como tarefa restringi-lo, pois a permanência nele tornaria o instinto sexual incontrolável, inutilizando-o posteriormente. O desenvolvimento do instinto sexual passa, então, do autoerotismo ao amor objetal, e da autonomia das zonas erógenas à subordinação destas à primazia dos genitais, postos a serviço da reprodução (FREUD,1908, p. 194). Dessa forma, o centro da questão é a capacidade do sistema psíquico de regular a descarga de estímulos, de lidar com as excitações. Caso contrário, elas serão sentidas como dolorosas ou poderão provocar efeitos desagradáveis. O trabalho psíquico, por sua vez, retarda o mecanismo de descarga, constituindo-se freio da pulsão, que não está interessado na descarga de energia, mas na qualidade desta vinculada ao prazer. O psíquico situa-se, portanto, como mediador, que propõe desvios, substitutos, atalhos que objetivam frear a pulsão, de modo a se apresentar como retardador frente às exigências do corpo. A pulsão, necessariamente, exige trabalho, exige constituição psíquica, construindo os primeiros momentos de representação do objeto. A atividade psíquica, portanto, teria como objetivo evitar o acúmulo pulsional – o que levaria ao sentimento de desamparo – e impedir que o sujeito desconsidere o princípio da realidade, colocando-se em perigo. Como nenhum objeto satisfaz a pulsão, no registro pulsional o objeto de satisfação por excelência estará desde sempre perdido. E é precisamente porque nenhum objeto pode satisfazer a pulsão que, em última instância, ele é de natureza totalmente variável, o que sugere também a diversidade dos destinos pulsionais e o necessário engajamento aos objetos culturais. Interessante verificar que nesse processo de instauração do princípio da realidade e, logo, da domesticação da pulsão sexual a educação aparece como uma mediação fundamental, atuando na sexualidade infantil, embora, ao mesmo tempo, Freud (1905) ressalte certa dificuldade dos educadores diante das manifestações da sexualidade infantil: [...] esse emprego da sexualidade infantil representa um ideal educativo do qual o desenvolvimento de cada um quase sempre se afasta em algum ponto, amiúde em grau considerável. Vez por outra irrompe um fragmento de manifestação sexual que se furtou à sublimação, ou se preserva alguma atividade sexual ao longo de todo o período de latência, até a irrupção acentuada da pulsão sexual na puberdade. Na medida em que prestam alguma atenção à sexualidade infantil, os educadores portam-se como se compartilhassem nossas opiniões sobre a construção das forças defensivas morais à custa da sexualidade, e como se soubessem que a atividade sexual torna a criança ineducável, pois perseguem como “vícios” todas as suas manifestações sexuais, mesmo que não possam fazer muita coisa contra elas. Nós, porém, temos todos os motivos para voltar nosso interesse para esses fenômenos temidos pela educação, pois deles esperamos o esclarecimento da configuração originária da pulsão sexual (FREUD, 1905, p. 43). Essa discussão se amplia na medida em que se leva em consideração a premissa de que os percursos encontrados pelo sujeito são necessariamente ancorados no campo da cultura e têm repercussões e registros na dinâmica psíquica individual. Nessa direção, surge espaço para reflexões acerca das consequências psíquicas da adaptação do sujeito ao princípio da realidade, procurando apreender as formulações acerca dos princípios constitutivos do aparelho psíquico – o princípio do prazer e o de realidade –, tendo como orientação os processos de inserção do sujeito nos modos de socialização, os processos identificatórios, os processos educativos entre outros. Nesse sentido, a constituição do psiquismo requer o avanço de uma posição auto erótica eminentemente vinculada ao princípio do prazer para uma organização que leve em consideração processos regidos pelo princípio da realidade. A libido, em benefício da emergência do sujeito, supõe destinos mediados socialmente, tendo em vista a necessidade de adaptação à realidade. Nesse contexto, a passagem do eu – prazer para o eu – realidade é correlata à perda do objeto primordial, do primeiro objeto de satisfação, permitindo uma reestruturação ou remodelação do eu que transforma a economia do objeto da pulsão. Compreende-se, portanto, que a pulsão sexual precisa se submeter a desvios, adiamentos e processos de constituição para que sejam viáveis uma estruturação do eu e a própria vida em sociedade; a pulsão sexual deve se submeter ao princípio da realidade. É essa a possibilidade de vida encontrada entre os homens, visto que a satisfação imediata e total coincidiria com a sua dissolução. Essas circunstâncias indicam que o processo de instauração do princípio da realidade é tributário da inserção do outro na dinâmica psíquica subjetiva, ainda não no viés edipiano, mas no sentido de que há, certamente, implicações da realidade externa, da cultura, da educação no funcionamento e desenvolvimento do psiquismo.

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